quarta-feira, 10 de setembro de 2008

Fora de Mim no JL

(santos da casa fazem milagres)



O amor além da morte

A contradição afirma o movimento da escrita: «Fora de mim é um livro virado para dentro», diz. Não que traduza as suas vivências, mas transporta as suas «inquietações». Escreve-as e publica-as na «esperança» de as partilhar com os leitores. O autor que agora se estreia na ficção é o nosso camarada de redacção, o jornalista Manuel Halpern, 34 anos, que a entrou na cena literária com duas peças de teatro, Palco e O Segredo Do Teu Corpo, que já teve duas encenações, e com um ensaio sobre o novo fado, O Futuro da Saudade.
É de «amor e de morte» o fado de Fora de mim, uma edição da Caderno. O romance fala em rigor do «amor para além da morte», cruzando longinquamente histórias que informam o nosso imaginário, como Romeu e Julieta ou o episódio de D. Pedro e Inês de Castro. Mas não é uma revisitação de lendárias paixões funestas, antes uma narrativa que corre sobre a impossibilidade do amor, num tempo em que todos os amores parecem possíveis. O jogo é entre o físico e o espiritual: «Há um corpo que se apaixona por uma alma e uma alma que se apaixona por um corpo». Em epígrafe, uma frase do filme de Oliver Stone sobre os Doors em que se diz a propósito do casamento simbólico de Jim Morisson com a amante: «A morte não os pode separar, apenas a ausência do amor».
O livro deu-se-lhe há muito, numa primeira imagem que Halpern diz até um pouco «banal», seguramente cinematográfica: um rapaz que acorda com uma rapariga morta ao lado na cama e que não se recorda quem é ou como ali terá ido parar ou morrer. A história é contemporânea, atalha alguma deriva urbana e geracional, com ecstasy e dance music, sem perder de vista a mordacidade que sempre se insinua na escrita, mesmo na jornalística, de Halpern, e um certo traço religioso ou de indagação existencial. «Interessou-me explorar sobretudo a questão da morte. Talvez tenha sido uma espécie de exorcismo da morte de algumas pessoas que me eram próximas. A questão da vida e da morte é uma inquietação constante de quase todas as pessoas, tal como a grande vontade de acreditar que vamos desta para melhor...», adianta. «Quis por outro lado ir ao fundo do que poderá sentir uma pessoa que acorda com alguém morto ao lado. E isso pode acontecer, não é nada de sobrenatural. E mesmo que ponha os mortos a falar, no meio de toda aquela história inverosímil, o leitor poderá encontrar explicações lógicas, um pouco como acontece em Vertigo, de Hitchcock».
A alusão não é casual, nem isolada. Halpern pensou também o clima de Mulholland Drive, de David Lynch. As referências cinematográficas e musicais são omnipresentes na sua ficção. «A inspiração vem de tudo o que nos rodeia», justifica, «o que no meu caso é muita música e cinema».

O impulso da escrita

No final da 4ª classe, a professora entregou a cada um dos alunos um cartão em que escreveu o que pensava que iriam ser. No do Manuel Halpern estava escrito poeta. Não lhe assistiram por muito tempo as rimas, nem mesmo os versos brancos. Mas o palpite não falhou redondamente. Halpern nunca perdeu as graças da escrita nem o jeito de contar histórias. Também arranhou umas notas musicais numa banda, de nome variável, no Colégio S. João de Brito. Assinava muitas das letras e músicas e pontuava ainda com prestações de voz e guitarra. O rocker não vingou, ainda que não lhe tivesse desamparado de todo a alma. No primeiro ano do curso de Comunicação Social, que fez na Universidade Católica, quando o inquiriram sobre os seus sonhos profissionais, disse que queria ser jornalista musical. A mania de fazer jornais também é coisa que o acompanha desde que começou a juntar letras, dobrar folhas A4 e contar os tostões que lhe rendiam as edições que vendia aos familiares e outros próximos de boa vontade.
Mal sabia ao iniciar o seu estágio no JL há dez anos que os seus sonhos iriam tornar-se reais nas páginas do nosso jornal, onde começou a fazer crítica musical e mais recentemente de cinema, tendo concluído, pelo caminho, uma pós-graduação nessa área em Barcelona. O próprio contacto com os criadores, por força do seu trabalho jornalístico, foi estimulante para fazer correr a sua necessidade de escrita. Diz que teve «sorte». É de acrescentar a sua persistência e o modo como, apesar de todas as contingências, nunca deixa de seguir o «impulso» repentino de «desatar a escrever». Tem vários romances e contos, alguns já acabados, outros a meio. E também um conjunto de short stories criadas a partir de músicas, que publica no site do Imago. O seu inventário de dispersos seria um bico de obra. É que como o próprio reconhece com justiça a capacidade de organização não está entre os seus predicados. A inclinação négligé é nele notória desde logo pelos sapatos, com os atacadores invariavelmente desatados. Mas é com desvelado cuidado e aplicada exigência que Manuel Halpern desata os nós da ficção.

MARIA LEONOR NUNES

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